Folheando artigos passados sobre mobilidade urbana, fui encontrar algumas coisas interessantes na revista CARTA CAPITAL datada de 2007. Para quem gosta de estar ‘antenado’ com assuntos sócio-econômicos do país, eis uma boa opção! Então, apesar de redigido há três anos é uma abordagem atualíssima e profunda que busca o entendimento da relação do automóvel com a sociedade moderna. O texto foi escrito por Antônio Luiz Monteiro Coelho da Costa (04/2007) com o título “O totem do capital” para a citada revista. Apesar do longo texto, solicito sua atenção para essa leitura.
O automóvel é um dos propulsores do desenvolvimento contemporâneo, mas a paixão desvairada por ele ameaça a natureza e a civilização !
Assim como os antigos sacrificavam colheitas, gado e até os filhos a ídolos e ícones aos quais seus sacerdotes atribuíam poderes imensos e uma profundidade insondável, a humanidade da era industrial sacrifica tempo, espaço, riquezas naturais e, às vezes, as próprias vidas a essas máquinas às quais os publicitários atribuem virtudes igualmente mágicas. Até as guerras empalidecem ante as estatísticas do trânsito, sem que isso inspire tanto horror quanto seria de esperar. Trata-se de sacrifícios humanos socialmente aceitos. No mundo, os acidentes matam 1,2 milhão de pessoas por ano e ferem ou incapacitam outros 50 milhões. O custo material dessas tragédias é 518 bilhões de dólares por ano - 65 bilhões só nos países periféricos, mais do que recebem em ajuda externa. Segundo a Organização Mundial da Saúde, são a segunda maior causa de mortalidade global dos 5 aos 29 anos (depois das infecções respiratórias para as crianças e da Aids para os jovens) e a terceira dos 30 aos 44 (depois da Aids e da tuberculose). Nos países ricos, são a primeira causa até os 44 anos. Do espaço disponível nas cidades dos EUA, 43% destina-se a ser usado não por seres humanos, mas por seus ídolos e algozes mecânicos: 33% para ruas e avenidas, 10% para estacionamentos. Considerando que há nesse país 770 automóveis por mil pessoas, pode-se dizer que cada carro dispõe de mais espaço para se movimentar do que cada pessoa dispõe para descansar, divertir-se, trabalhar e guardar o restante de suas posses. Como se chegou a isso?
Como atestaram o conto Mecanópolis de Miguel de Unamuno, em 1913, e a peça Robôs Universais Rossum, de Karel Capek, em 1921, assim como os filmes Metrópolis, de 1927, Alphaville, de 1965, Matrix, de 1999, e Eu, Robô, de 2004, o imaginário da civilização industrial é assombrado com cada vez mais freqüência pelo vago temor de máquinas a dominar ou a substituir a espécie humana. Na maioria das vezes, tais máquinas são imaginadas como robôs ou andróides invencíveis ou como computadores de inteligência sobre-humana. Entretanto, na medida em que essa ansiedade responde a algo de real, não se trata de verdadeiras máquinas autoconscientes, mas sim da característica do capitalismo de estabelecer relações de produção não de ser humano para ser humano, como nas antigas sociedades escravistas e feudais, mas por meio de objetos - de mercadorias cobiçadas como símbolo de status a máquinas usadas na produção. Assim como certas religiões transformam simples objetos - estátuas, símbolos, livros - em fetiches e ídolos com vontade e poderes próprios, o mesmo faz o capitalismo. O fetichismo ou personalização da mercadoria, núcleo do primeiro capítulo de O Capital, certamente não está entre os conceitos de Marx que se tornaram obsoletos. O mesmo pode-se dizer de sua contrapartida, a destituição do ser humano de si mesmo, sua coisificação: são tendências hoje muito mais irresistíveis do que eram em 1867.
Cada vez mais, o operário trabalha não para um patrão humano, mas para uma empresa impessoal que não parece ser mais que um capital, um amontoado de máquinas e outros ativos. Segundo o jornalismo econômico, decisões econômicas que podem conduzir uma nação inteira ao crescimento ou ao colapso não são tomadas por banqueiros e investidores poderosos, mas por um misterioso conjunto de papéis, telas e computadores chamado "mercado". Mais ainda, a se acreditar nos publicitários e nos gurus da auto-ajuda e da "psicologia evolucionária", o desejo é condicionado - não pela sociedade, mas pela própria natureza - a reagir menos às características físicas, afetivas e sociais do parceiro que às suas posses materiais.
O popular psicólogo David Buss é um desses que dão verniz científico ao senso comum das classes médias condicionadas a competir e consumir - mais precisamente, dos universitários estadunidenses que respondem às suas pesquisas. Afirma que as mulheres, de qualquer classe e cultura, valorizam em primeiro lugar as boas possibilidades financeiras do parceiro. Ou, como dizem portadores da mesma síndrome em terras bandeirantes, "quem gosta de homem é gay, mulher gosta é de 'karatê' - cara ter poder, cara ter dinheiro, cara ter carro". Como o poder só se faz evidente nas celebridades, como o saldo bancário não vem escrito na testa, como as roupas e os modos são indicadores cada vez menos confiáveis de condição social, o carro passou a ser, por excelência, o atestado visível e móvel de classe e riqueza - e, ao menos na fantasia de seus donos, também de direito ao amor, ao respeito e à inveja do próximo. Desde as primeiras transmissões de tevê e os primeiros salões de automóvel, os publicitários associam sistematicamente automóveis a belas modelos. A ponto de que, para o paulista, uma mulher desejável é uma "máquina" - um carro, é claro. Se for muito desejável, um "avião" - luxo para poucos, admite-se com um suspiro. No início da genealogia da cultura de ansiedade a respeito das máquinas talvez se possa pôr O Homem de Areia, de E.T.A. Hoffmann. Escrito em 1816, inspirou um famoso ensaio de Sigmund Freud, O Estranho (Das Unheimliche), e foi considerado o primeiro conto de ficção científica da história por Isaac Asimov, o autor dos livros que inspiraram Eu, Robô. Um professor de Física apresenta a filha Olímpia aos alunos. É bela, canta bem e presta muita atenção ao interlocutor, sem bocejar ou dar qualquer sinal de tédio ou distração. O olhar é vazio e a fala escassa - seguidos "ah, ah", de concordância, no final, um "boa noite, querido" -, mas isso deixa o protagonista ainda mais cativado por tal alma misteriosa e profunda, única a compreender seus sentimentos e elucubrações e aceitá-los sem restrições. Mas a amada vem a ser apenas um autômato - um robô, diríamos hoje - e a descoberta o leva à loucura. No conto de Hoffmann, só o romântico e perturbado Natanael se deixa seduzir pela máquina. Os colegas são iludidos pela aparência de vida e vêem a beleza, mas a aparente estupidez e inexpressividade os mantêm a distância e sua estranheza os amedronta. Hoje, ao contrário, unheimlich é não se deixar seduzir, não lutar pela(s) melhor(es) máquina(s) que a renda familiar permita manter.
Resultado: do consumo de petróleo nos países desenvolvidos, causa principal do aquecimento global que ameaça o equilíbrio ecológico e o futuro da civilização, os veículos representavam 42% em 1973. Em 2000, sua participação havia aumentado para 58% e essa porcentagem tende a aumentar. Hoje, o consumo de petróleo na indústria e na geração de eletricidade é relativamente estável e a maior parte do crescimento da demanda está relacionado aos transportes. Não se trata apenas da operação do veículo propriamente dita: esta representa dois terços do consumo, mas outro terço está relacionado à fabricação e manutenção dos veículos e à construção de infra-estrutura (ruas, estradas, estacionamentos, postos de serviços) para possibilitar o seu uso. Na maior parte (85%), isso significa transporte sobre pneus: ferrovias, navios e aviões representam só 15%. Por trás da magia dos fetiches e do discurso publicitário da elegância e da aerodinâmica, o automóvel é um meio de transporte extremamente ineficiente. Apesar dos aperfeiçoamentos introduzidos desde o choque do petróleo dos anos 70, só 12% do combustível produz movimento útil. O resto é perdido pelo sistema de refrigeração do motor ou desperdiçado em escapamento, freagem ou atrito no motor, transmissão e eixos. Da energia posta em movimento, talvez 5% a 20%, dependendo do veículo e da ocupação, é para transportar pessoas e seus pertences: o resto movimenta a própria massa do carro. Noves fora, um carro é 1% transporte e 99% desperdício e exibição. Em sua primeira visita à Terra, um extraterrestre pouco sofisticado poderia julgar que o automóvel é a espécie dominante do planeta e que os humanos são seus escravos, sem fazer muita distinção entre culturas. Na verdade, há graus de devoção: europeus e asiáticos são mais comedidos. Satisfazem-se com carros menores e investem muito em transporte coletivo, criando e mantendo eficientes e velozes trens de passageiros e amplas redes de transporte metropolitano. Já os americanos - estadunidenses, sobretudo, mas também os brasileiros mais remediados - entregam-se ao culto sem reservas e procuram reprimir as heresias. Salvo por melancólicas estações de subúrbio, os trens de passageiros foram abolidos ou relegados a museus. Os metrôs, quando existem, são embrionários. Mesmo o transporte público sobre pneus é lento, precário, como se fosse o caso de condenar ao inferno aqueles que não pagam o dízimo à verdadeira religião. Nos anos 90, o tempo médio em uma viagem de casa ao trabalho era de 51 minutos no Rio de Janeiro, ante 36,5 minutos em Nova York e 35 em Paris, mas para muitos dos mais pobres, o suplício dura, ainda, até três horas. A classe média motorizada escapa dessas penas mais cruéis para o purgatório dos engarrafamentos e rodízios. O céu, claro, é dos ricos e de seus helicópteros.O carro pode ser uma fantasmagoria enquanto corporificação de impulsos eróticos desviados e a suposta liberdade de movimento que promove é desmentida a cada semáforo e a cada congestionamento. Entretanto, seus efeitos destrutivos sobre a natureza são bem reais. Como também seus efeitos construtivos em relação ao capital. Do fim da Primeira Guerra Mundial aos nossos tempos, a história do capitalismo pode ser dividida em dois períodos: a era do fordismo e a do toyotismo.
Nos anos 20, Henry Ford provocou a maior revolução nos métodos de produção, gestão e regulação do capitalismo desde a invenção da máquina a vapor. A organização racional do trabalho, com otimização e controle minucioso dos tempos e métodos gastos em cada operação, havia sido proposta e implementada pelo engenheiro Frederick Taylor em 1911, mas dependia muito de fiscalização e supervisão por intermediários. De um só golpe, a linha de montagem de Ford deu forma material e objetiva ao controle e o tornou praticamente automático. Em vez de ser simplesmente apressado pelo contramestre, o operário tinha de correr para acompanhar o ritmo da esteira, como Carlitos em Tempos Modernos. Ford não se satisfez com o controle absoluto do processo produtivo em suas fábricas: pretendeu também moldar a sociedade e em certa medida o conseguiu. Para viabilizar fábricas na escala necessária para produzir automóveis em ritmo de linha de montagem, abriu mão do controle direto pessoal do capital e deu impulso à multiplicação das sociedades anônimas que na época ainda eram exceção, mas hoje respondem pela maior parte da economia. Enquanto o aumento de produtividade reduzia o preço do produto, Ford conscientemente melhorava a remuneração de seus empregados em relação aos padrões da época e os incentivava a adquirir seus automóveis, dando a partida ao modelo de crescimento que respondeu pelos ?anos dourados? do capitalismo do pós-guerra ao se espalhar por todo o mundo industrializado ou em vias de industrialização, uma vez que os governos compreenderam a natureza do novo processo e começaram a aplicar as ferramentas keynesianas adequadas à sua coordenação e regulação em escala nacional.
Na versão tropical desses já velhos bons tempos, Juscelino Kubitschek fez o Brasil mergulhar de cabeça na revolução fordista. No início dos "50 anos em 5", havia apenas um punhado de veículos importados e uma só estrada asfaltada de extensão razoável, a via Dutra. Ao final, várias montadoras estadunidenses e européias estavam instaladas no ABC paulista, cujos produtos podiam, bem ou mal, rodar o país de Belém ao Chuí. Entretanto, as ferrovias, embora tivessem ainda destaque em seu Plano de Metas, foram praticamente abandonadas - e a ditadura militar não fez mais do que aprofundar esse modelo montado, no qual o Brasil se tornou o maior pólo industrial da América Latina, deixando para trás pioneiros como o México e a Argentina. Nem todas as idéias de Ford foram igualmente bem-sucedidas. Com o objetivo de eliminar a embriaguez, reduzir as faltas ao trabalho e aumentar ainda mais a produtividade, deu um apoio à proibição do álcool que foi decisivo para a vitória da Lei Seca, mas o resultado, como se sabe, foi uma catástrofe social. O excesso de puritanismo de Ford foi-lhe contraproducente também em outros aspectos. Por ver o carro sob o aspecto funcional, e padronizar ao máximo para baratear seu custo ("Você pode ter seu modelo T de qualquer cor, desde que seja preto"), deixou de explorar todo o potencial do automóvel como símbolo de distinção social e fetiche erótico. Coube à General Motors descobrir esse filão e tomar a liderança. Ainda assim, Ford fundou a sociedade de consumo. Se Lenin foi um grande admirador de Taylor, Stalin teceu elogios ainda maiores aos métodos de Ford. O escritor Aldous Huxley chegou a imaginar que a revolução fordista duraria para sempre e acabaria por absorver tanto o capitalismo liberal quanto o socialismo: seu Admirável Mundo Novo, escrito em 1932, passa-se no ano 632 d.F. (depois de Ford), quando as pessoas, em vez do sinal-da-cruz, fazem um T. A era Ford, porém, não durou tanto: a partir dos anos 70, o acirramento da competição internacional pôs abaixo o modelo de planejamento em escala nacional, no qual se podia confiar que praticamente todos os aumentos concedidos aos trabalhadores seriam gastos em produtos nacionais e engordariam o lucro e o capital dos seus empregadores. Juntamente com as crises do dólar e do petróleo, também desmontou a expectativa de que a modernização e o crescimento econômico avançariam, qual linha de montagem, em ritmo previsível e planejável. Voltada para o mercado externo e pronta para reagir imediatamente a mudanças de conjuntura e de preferências, a grande indústria esforçou-se para livrar-se de seus operários, reduzir seus salários e adotar sistemas de produção mais flexíveis e adaptáveis, enquanto governos e organizações multilaterais davam atestado de óbito ao keynesianismo e aderiam ao neoliberalismo selvagem. Mais uma vez, porém, as montadoras deram o mote e o nome à nova fase do capitalismo: trata-se agora de toyotismo. Mudaram os ritos e os profetas, não os deuses.
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